sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Harmonia

foto GL
Até os anos 40 e mesmo na década de 50, a harmonização de uma melodia no Brasil era quase sempre indicada de maneira bastante rudimentar. Eram as chamadas "primeira do tom" (um acorde perfeito de tônica), "segunda do tom" (acorde perfeito da dominante) e "terceira do tom com sétima" (acorde da subdominante acrescido da sétima). Só posteriormente a notação musical passou a ser a mesma do jazz, dos acordes cifrados com as letras identificadoras A, B, C, D, E, F e G, respectivamente para as notas lá, si, dó, ré, mi, fá e sol, chamadas tônicas do acorde.

Essa notação básica facilitou muito o ensino e a leitura de harmonia, beneficiando quem seguiu carreira de músico a partir de então. Mas, tanto num caso como no outro, ela não indica a disposição das notas do acorde, nem qual deve ser a nota mais grave, chamada fundamental. Pode ser a tônica, a do meio ou a mais aguda. Num acorde de dó maior perfeito, cuja cifra é C, o natural é que o dó, sendo a tônica, seja a fundamental. Mas nada impede que se faça uma inversão do acorde para mi-sol-dó, ou sol-dó-mi, em vez de dó-mi-sol. Essas inversões, que se tornaram mais freqüentes na música brasileira a partir da Bossa Nova, podem eventualmente dar uma sensação de dissonância, sobretudo se o executante usar a liberalidade, que lhe é concedida, de nem tocar a tônica, eliminando-a e deixando-a subentendida. Isso gera uma impressão de certa instabilidade, de leveza, como se a base harmônica estivesse pairando no ar e não repousando.

Além do ritmo, os acordes invertidos são outra marca no violão de João Gilberto. Seu conhecimento de harmonia teria se desenvolvido bastante em Porto Alegre, nas proveitosas horas de convívio musical com o avançado professor e maestro Armando Albuquerque, amigo de Radamés Gnattalli. No Rio, a aproximação com Tom Jobim colaborou para aprimorar o requinte de seus acordes no violão, aplicados aos arranjos dos primeiros discos, nos quais Tom foi o arranjador e estava envolvido totalmente. De fato, a atuação de Tom Jobim foi preponderante nos rumos da harmonia da Bossa Nova, pois, como ele vinha de uma experiência como arranjador, desenvolvera a técnica de vestir as músicas para o cantor, ou seja, criar novas harmonias que dessem coloridos diferentes a canções já gravadas.

Quando Sérgio Ricardo assumiu seu posto como pianista da boate Posto 5, foi Tom quem lhe mostrou o que era possível fazer com a harmonia, "sentou no piano e mostrou a mesma melodia - eu me lembro, era o 'Feitiço da Vila' [de Noel Rosa] - com uma harmonia que ele fazia. Com muita paciência, ele me mostrou como se encadeavam aqueles acordes de nonas e décimas primeiras. Fui vendo um mundo novo dentro da música".

Ainda assim, é justo reconhecer que o grande mestre de harmonia de João Gilberto foi ele mesmo, na sua disciplina férrea em tocar dezenas, centenas de vezes uma canção até atingir o ponto ideal, o equilíbrio. Ao esmiuçar obstinadamente a natureza de cada canção, ele acabava encontrando um só acorde de três ou quatro notas que simplificavam a seqüência original sem ferir a natureza da canção, embelezando-a como jamais se ouvira antes. Tinha-se a sensação de um novo caminho, que passava a ser definitivo, pois não havia nada que pudesse ser trocado, suprimido ou acrescentado.

Ao mesmo tempo, o realce dado ao violão de João Gilberto era um fato incomum para um disco de cantor. Quando foi gravar Chega de Saudade, deixou os técnicos atordoados ao exigir um microfone para ele e outro para o violão. Com esse destaque, a harmonia passou a ser percebida muito mais claramente nos seus discos, e assim, junto com a estupefação pela marcação rítmica, vinha outra semelhante, pelas harmonias invertidas, muitas vezes sem a tônica como fundamental; ocasionalmente, ela nem mesmo estava no acorde. Mais um elemento para dar leveza. É o que acontece, por exemplo, em "Desafinado", com a quinta no bordão em vez da tônica. A dissonância fica mais evidente, mais provocante.

A despeito de suas composições "Bim Bom" e "Hô-bá-lá-lá" possuírem uma estrutura harmônica simples, a maneira de dispor as notas dos acordes através de inversões e o acréscimo de acordes de passagens e acidentados acrescentaram uma sofisticação muito menos evidente nos discos de outros cantores.

João abominava tocar os acordes em arpejo, isto é, uma corda depois da outra. As notas eram feridas todas ao mesmo tempo, num bloco, e dessa maneira o violão soava como o acompanhamento completo, a orquestra de um violão, com quatro notas de cada vez, emitidas pelo dedo polegar, pelo indicador, pelo médio e pelo anular. Esse som de violão, com ritmo e harmonia, era metade do som que João buscava. Para ser uma entidade, faltava a outra metade: sua voz.

Mello, Zuza H. João Gilberto. São Paulo: Publifolha, 2001. Coleção Folhaexplica.

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