sábado, 21 de abril de 2012

Rito de passagem

"Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho".
Lêdo Ivo

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Vitória de Darcy Ribeiro

NYC-foto GL
“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"


Darcy RibeiroTentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"
Darcy Ribeiro

terça-feira, 17 de abril de 2012

Caetano Veloso e a Verdade Tropical

ilustração Trimano
 Caetano Veloso comenta o ensaio recém-publicado "Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo", de Roberto Schwarz. Publicado na Ilustríssima da Folha de São Paulo, domingo 15 de abril de 2012.

 
Folha - Roberto Schwarz faz um misto de valorização literária e severa crítica ideológica de "Verdade Tropical", 15 anos depois da publicação. O que retém em sua leitura? 
Caetano Veloso - É envaidecedor que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro. Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica. No entanto, retenho a observação de que o argumento desenvolvido a partir da cena central de "Terra em Transe" seja, no livro, um tanto mal concebido. 
 
Por que Schwarz só publica o ensaio 15 anos depois do seu livro? 
Não sei. Talvez ele o tenha lido com grande atraso (não 15 anos de atraso, é claro) e demorado muito para decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu. 
 
Por que o livro renasce agora, com a edição de bolso de um de seus capítulos e a crítica de Schwarz? 
Não sei. 
 
Como foi a recepção do livro nos países em que foi publicado? 
Foi publicado, em boas traduções, na Itália e na Espanha (e países de língua espanhola). A tradução francesa é horrível. A grega eu não sei ler. De qualquer modo, todas as traduções partem da edição americana (os direitos fora do Brasil e de Portugal são da Knopf), que deformou muito a estrutura do original. Todos os elogios literários que o livro mereceu de Roberto não seriam justificados para quem só lesse as traduções. 
Me lembro de que a "New York Times Book Review" deu resenha favorável. Ouço comentários positivos de amigos argentinos, espanhóis e italianos. Também de alguns gregos. Na França parece que, além da tradicional mania francesa de traduzir como quem corrige o original, deram o longo texto a pessoas totalmente desqualificadas intelectualmente: já que se trata de um livro de cantor pop, por que pedir a alguém que saiba ler e escrever para traduzir? 
 
Schwarz vê a relação dos tropicalistas com a esquerda como uma "comédia de desencontros", na qual haveria mais afinidades do que divergências. Seu livro descreve longamente as divergências, e Schwarz agora as reitera. Ainda é possível falar em afinidades? 
Claro que há e sempre houve afinidades. Gil e eu, além de Tom Zé e Rogério Duprat, sempre fomos "de esquerda". Nossos amigos foram sempre majoritariamente de esquerda. Na altura do tropicalismo deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos, que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O maior inimigo era esse automatismo. 
A cena de "Terra em Transe" é positiva porque expõe a quebra do automatismo ideológico a que artistas e intelectuais se viam presos. Quando o protagonista fala, o tom blasfemo revela tratar-se de um momento liberador. Claro que, uma vez olhando as coisas mais livremente, os males da esquerda apareceriam. 
 
O ensaio atribui a você uma "generalização para a esquerda do nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam" e a visão da "esquerda como obstáculo à inteligência". Desde então, que renovação você vê na esquerda do ponto de vista cultural? 
Toda cartilha ideológica, pode ser -e frequentemente é- obstáculo à inteligência. Eu tinha amigos na extrema esquerda que gostavam do que eu fazia e nada opunham ao tropicalismo. 
Já contei em minha coluna no "Globo" como quase dei apoio logístico ao grupo de Marighella, através de minha amiga Lurdinha, uma guerrilheira que foi torturada e a quem [o delegado Sérgio Paranhos] Fleury se refere, numa entrevista, como a pessoa mais corajosa que ele conheceu. 
Aliás, Hélio Oiticica, Glauber e Zé Celso eram de esquerda, além de Rubens Gerchman, Zé Agrippino e Rogério Duarte. O "desbunde" foi sobretudo um evento interno ao mundo das esquerdas. Hoje em dia, quando Delfim é defensor de Lula e Dilma e se opõe a FH, gosto da revista "Fevereiro", de Ruy Fausto, e detesto blogs como o de Paulo Henrique Amorim. 
Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte (não vale dizer que a "grande imprensa já diz"). Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso? 
Os esforços intelectuais de [Theodor] Adorno para igualar a vida americana ao Terceiro Reich e à União Soviética só servem para provar repetidas vezes que as liberdades nas democracias liberais são suspeitas: a ostensiva falta de liberdade em países comunistas nunca é combatida, nem eloquentemente, nem cedo. 
Quando eu era moço, intelectuais de esquerda dizerem-se anti-stalinistas representava um piso mínimo de elegância: quase nunca passava de uma declaração para se poder continuar sendo comunista. Não havia (como Tony Judt mostrou que não havia na França) um esforço crítico, por parte de intelectuais de esquerda, de se opor aos estados policiais. 
É interessante notar que Zizek elogia o imperialismo chinês no Tibete e desculpa as paradas fascistas da Coreia do Norte. Nossos elegantes uspianos nada dizem. 
 
Qual foi a novidade em termos de crítica ao tropicalismo no Brasil e no exterior? 
Não leio quase nada sobre tropicalismo. Às vezes esse movimento é citado em publicações sobre música popular, às vezes em artigos acadêmicos (de estudos sobre América Latina ou língua portuguesa). Nada me impressiona muito. 
 
Augusto de Campos e Ferreira Gullar polemizaram em torno de acontecimentos dos anos 1950 e 60, o país discute a Comissão da Verdade, torturadores têm sofrido "esculachos" na porta de casa. A conta dos anos 1960 e 70 não fecha? 
Que conta fecha? Mas vamos andando. O ser humano é um desequilibrador. Pessoalmente, sou pela Comissão da Verdade. Há um trecho crucial em "Verdade Tropical", que Schwarz sintomaticamente ignora, em que conto o quanto aprendi sobre a verdade da sociedade brasileira ao ouvir, na cadeia, urros de dor de torturados, os quais não eram nossos companheiros de prisão política. Havia quem dissesse que se tratava de presos políticos vindos de outros quartéis. Mas chegou-se à conclusão de que eram presos comuns, ladrões da Zona Norte, bandidos. 
Pois bem, antes da ditadura, durante e depois, esses maus tratos vêm se dando nas delegacias e prisões civis e militares. Se não denunciarmos (e mesmo punirmos) os torturadores que trabalhavam para o Estado, não teremos a saúde social mínima necessária para começar a acabar com isso. 
 
Há um paralelo entre o público dos festivais e os comentaristas de internet e blogueiros de hoje? 
Deve haver. Mas não interessa. 
 
O que pensa da Comissão da Verdade e da Lei da Anistia? 
Senti que o modelo espanhol da Anistia serviria para o Brasil. Hoje sou totalmente pela Comissão da Verdade e não acho que torturadores devam ser perdoados. Os guerrilheiros foram punidos (inclusive com tortura e morte). É enganoso equiparar os dois tipos de crime. 
 
Você é retratado como um memorialista "comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável". Como responde à acusação de "conservadorismo" político? 
Deixei de temer palavras como "conservador" ou "de direita", como se fossem xingamentos que ostracizam, em 1967. Minha teimosia em permanecer no campo da esquerda vem de minha crença na possibilidade de mudar para melhor o jeito de a gente viver sobre a Terra. Não descarto sequer a eventualidade de alguma violência. Mas estou certo de que o que se chama de esquerda também atrapalha muito. 
O mito do Brasil e de sua oportunidade de originalidade me põe numa situação em que posso sonhar mais alto, pondo os horrores das revoluções e seus desdobramentos sob crítica. Por essa razão me atraem mais as sugestões de Mangabeira Unger do que as repetições da esquerda uspiana. 
Ele abre espaço para a originalidade do Brasil. Para mim isso é fatal: somos originais, seremos originais ou desapareceremos. O capitalismo não é inquestionável: que a gasolina americana tivesse sido enriquecida com chumbo porque isso a fazia mais rentável, e que o empresário que usou essa vantagem tenha mantido em segredo a descoberta de que o chumbo era prejudicial à saúde pública para não ver cair o lucro; e que, depois de essa descoberta ter-se tornado pública, a gasolina americana tenha reduzido gradativamente até zero seu teor de chumbo, mas a brasileira não, por razões de lucro (com todas as implicações de acumulação de capital e de reafirmação de poderes imperialistas), é algo que expõe a que graus de irracionalidade e de desumanidade pode chegar uma organização social que se submeta à exclusiva força da grana. Sou contra. 
Mas não quero que os que lutam contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da originalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta e poderia, de qualquer modo, orientar os serviços que alguém queira prestar à Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos movimentos revolucionários da esquerda convencional. Estes têm levado à autocracia e a Estados policiais. Sou contra. 
Além disso, quando se diz "capitalismo" o que é mesmo que se está querendo dizer? O capítulo sobre o conceito no livro de Mangabeira é instigante. E Lacan disse uma vez que "o inconsciente é capitalista". 
 
Schwarz critica o "amor aos homens da ditadura" expresso por Gilberto Gil ao tomar ayahuasca e comenta os seus elogios à letra de "Aquele Abraço": "A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito". Como vê essa avaliação severa? 
Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz. 
Gosto mais do esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio dessa escolha da palavra "esclarecimento" em lugar de "Iluminismo".) 
A lição aplicada pelos militares surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade. 
 
Para o ensaísta, há uma discrepância entre as visões de "Verdade Tropical" sobre o Brasil pré-64: ora é descrito como um "ascenso socializante", com sua experiência em Santo Amaro e em Salvador, ora como "um período incubador de intolerância e ameaça à liberdade". Você enxerga essa discrepância? 
Eu poderia ter sido um garoto de esquerda, sem desconfianças a respeito sequer do stalinismo. Mas não fui. Me atraiu o livro de Luís Carlos Maciel sobre Beckett, Kafka e Ionesco: a esquerda que eu conhecia era lukacsiana e ninguém falava em Adorno em 1963 em Salvador (embora se falasse muito em Gramsci, o que era pioneiro). 
Poderia ter sido um garoto assim e, depois, descoberto que nos países comunistas (não só na URSS e seus satélites, mas na China de Mao, em Cuba, na Coreia do Norte) o Estado desrespeitava oficialmente os mais básicos direitos humanos -e ter me revoltado contra o projeto comunista. 
Mas eu era um garoto desconfiado da "ditadura do proletariado", além de ser um sujeito pacato da baixa classe média que sentia natural horror pelo aspecto violento das revoluções.
Descobrir que a experiência do "socialismo real" era de fazer temer os esboços de implantação do comunismo entre nós não foi uma surpresa assustadora. Foi um gradual reconhecimento da complexidade das coisas. Isso aparece em meu livro com todas as idas e vindas por que minha mente passou. Com as nuances e sem evitar as questões que não ficaram resolvidas dentro de mim. 
Não é um livro de propaganda ideológica. É um relato em que as reflexões relembradas -ou as sugeridas pela lembrança- acompanham cada passo. 
 
Você se reconhece na descrição que o crítico faz de seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo"? 
Gosto de atrito. É a base do sexo. Mas não rejeito o antagonismo. 
Sou nitidamente contra o Brasil ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos militares reformados. Sou nitidamente contra Lula ter apoiado a eleição de Ahmadinejad antes de o próprio Irã decidir se as eleições tinham sido fraudadas ou não.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O AGADÁ DA TRANSFORMAÇÃO

foto Daryan


Em meu peito vazio de despeito
Oxum fincou o seu ixé
sou o peixe mergulhado
no canto do pássaro odidê
pousado na folha da vida
trinando a ternura
que aconchega a criança
Ó peixe dourado que vais nadando
os dias e as noites da minha sorte
emblema de Oxum me levando
águas de Oxalá me lavando
no banho lustral da minha morte
Existo em minha natureza Ori
levedado pelos Orixás
embora o costado dos ancestrais
clame
a costa dos escravos
proclame
o cravo cravado no lombo
me tombando no tombo
da contra-costa rebelada do meu axé
inflamando na chaga do congo
a chama incendiária do quilombo
basta ouvir o som grave do rum
o repicar do rumpi
o picar agudo do lé
e as irmãs negras portadoras do sofrimento
os homens moldados nos crepes ancestrais
em uníssono clamor
de convulsivo furor
desde a degradação e o opróbrio
desfraldam a bandeira
úmida do sangue negro derramado
no combate vermelho sempre continuado
pela integridade verde da herança nativa poluída
Somos a semente noturna do ritmo
a consciência amarga da dor
florescida aos toques anunciadores
da perenidade das coisas vivas
(...)
Ouçamos o pipocar do couro retesado
(ó agadá da transformação)
rompendo a couraça do insensível mundo
branco
na sola dos pés sangrentos
temos dançando
o madrigal da escravidão
o minueto do tráfico
o fado do racismo
agora na pele flamejante dos tambores
dancem eles o nosso baticum de guerra
até despontar aquela aurora
de dançar o afoxé da nossa batalha final vitoriosa
(...)
Tempo de viver
(ensina Ajacá)
é tempo de morrer
uns já estão mortos
vivendo
nós estaremos vivos
morrendo
Morrer enquanto cintila no meu peito
o ixé áureo de Oxum
enquanto caminho a ancestralidade da minha
terra
nas pegadas temerárias de Ogum
ao fio do agadá
transformo a queixa muda das irmãs negras
neste canto marcial de esperança
de cada soluço teu
irmão
faço uma bala de fuzil
impeço que a bondade amoleça tua revolta
e tua dança perca o embalo da trincheira
tornando tua coreografia
grávida de símbolos
em vil moeda de espetáculo mercantil
Vem do fundo escuro do tambor
esse aflito olhar magoado
(não vencido apenas derrotado)
das irmãs e irmãos em África
fixo olhar pungente
absorvendo a beleza vital do meu corpo
incrustação do ixé
projeção amorosa de Oxum
em minha origem plantado
por desígnio paterno de Olorum
o olhar a devolvendo
à intensidade e pungência
da antiga luta comum
processada à regência
do agadá transformador
e do nosso cálido
recíproco
e solidário amor
Ogunhiê!
Salvador, 14 de janeiro de 1982
(Dia da lavagem do Senhor do Bonfim).


 (Abdias Nascimento)