sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Harmonia

foto GL
Até os anos 40 e mesmo na década de 50, a harmonização de uma melodia no Brasil era quase sempre indicada de maneira bastante rudimentar. Eram as chamadas "primeira do tom" (um acorde perfeito de tônica), "segunda do tom" (acorde perfeito da dominante) e "terceira do tom com sétima" (acorde da subdominante acrescido da sétima). Só posteriormente a notação musical passou a ser a mesma do jazz, dos acordes cifrados com as letras identificadoras A, B, C, D, E, F e G, respectivamente para as notas lá, si, dó, ré, mi, fá e sol, chamadas tônicas do acorde.

Essa notação básica facilitou muito o ensino e a leitura de harmonia, beneficiando quem seguiu carreira de músico a partir de então. Mas, tanto num caso como no outro, ela não indica a disposição das notas do acorde, nem qual deve ser a nota mais grave, chamada fundamental. Pode ser a tônica, a do meio ou a mais aguda. Num acorde de dó maior perfeito, cuja cifra é C, o natural é que o dó, sendo a tônica, seja a fundamental. Mas nada impede que se faça uma inversão do acorde para mi-sol-dó, ou sol-dó-mi, em vez de dó-mi-sol. Essas inversões, que se tornaram mais freqüentes na música brasileira a partir da Bossa Nova, podem eventualmente dar uma sensação de dissonância, sobretudo se o executante usar a liberalidade, que lhe é concedida, de nem tocar a tônica, eliminando-a e deixando-a subentendida. Isso gera uma impressão de certa instabilidade, de leveza, como se a base harmônica estivesse pairando no ar e não repousando.

Além do ritmo, os acordes invertidos são outra marca no violão de João Gilberto. Seu conhecimento de harmonia teria se desenvolvido bastante em Porto Alegre, nas proveitosas horas de convívio musical com o avançado professor e maestro Armando Albuquerque, amigo de Radamés Gnattalli. No Rio, a aproximação com Tom Jobim colaborou para aprimorar o requinte de seus acordes no violão, aplicados aos arranjos dos primeiros discos, nos quais Tom foi o arranjador e estava envolvido totalmente. De fato, a atuação de Tom Jobim foi preponderante nos rumos da harmonia da Bossa Nova, pois, como ele vinha de uma experiência como arranjador, desenvolvera a técnica de vestir as músicas para o cantor, ou seja, criar novas harmonias que dessem coloridos diferentes a canções já gravadas.

Quando Sérgio Ricardo assumiu seu posto como pianista da boate Posto 5, foi Tom quem lhe mostrou o que era possível fazer com a harmonia, "sentou no piano e mostrou a mesma melodia - eu me lembro, era o 'Feitiço da Vila' [de Noel Rosa] - com uma harmonia que ele fazia. Com muita paciência, ele me mostrou como se encadeavam aqueles acordes de nonas e décimas primeiras. Fui vendo um mundo novo dentro da música".

Ainda assim, é justo reconhecer que o grande mestre de harmonia de João Gilberto foi ele mesmo, na sua disciplina férrea em tocar dezenas, centenas de vezes uma canção até atingir o ponto ideal, o equilíbrio. Ao esmiuçar obstinadamente a natureza de cada canção, ele acabava encontrando um só acorde de três ou quatro notas que simplificavam a seqüência original sem ferir a natureza da canção, embelezando-a como jamais se ouvira antes. Tinha-se a sensação de um novo caminho, que passava a ser definitivo, pois não havia nada que pudesse ser trocado, suprimido ou acrescentado.

Ao mesmo tempo, o realce dado ao violão de João Gilberto era um fato incomum para um disco de cantor. Quando foi gravar Chega de Saudade, deixou os técnicos atordoados ao exigir um microfone para ele e outro para o violão. Com esse destaque, a harmonia passou a ser percebida muito mais claramente nos seus discos, e assim, junto com a estupefação pela marcação rítmica, vinha outra semelhante, pelas harmonias invertidas, muitas vezes sem a tônica como fundamental; ocasionalmente, ela nem mesmo estava no acorde. Mais um elemento para dar leveza. É o que acontece, por exemplo, em "Desafinado", com a quinta no bordão em vez da tônica. A dissonância fica mais evidente, mais provocante.

A despeito de suas composições "Bim Bom" e "Hô-bá-lá-lá" possuírem uma estrutura harmônica simples, a maneira de dispor as notas dos acordes através de inversões e o acréscimo de acordes de passagens e acidentados acrescentaram uma sofisticação muito menos evidente nos discos de outros cantores.

João abominava tocar os acordes em arpejo, isto é, uma corda depois da outra. As notas eram feridas todas ao mesmo tempo, num bloco, e dessa maneira o violão soava como o acompanhamento completo, a orquestra de um violão, com quatro notas de cada vez, emitidas pelo dedo polegar, pelo indicador, pelo médio e pelo anular. Esse som de violão, com ritmo e harmonia, era metade do som que João buscava. Para ser uma entidade, faltava a outra metade: sua voz.

Mello, Zuza H. João Gilberto. São Paulo: Publifolha, 2001. Coleção Folhaexplica.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

De olho nas Olimpíadas do Rio


R.Gerchman

Vieram com Simonal, aquele abraço, francamente...um engano total nossa manifestação em Wembley, irrelevante não fosse a presença de Pelé...nossa música vencedora foi feita por Tom Jobim e está aí pelo mundo viajando...quando o olhar do mundo focar no Rio a trilha sonora deve partir de Tom Jobim, nossa vitória. Não faltam grandes artistas para realizar isso: Edu Lobo, Jacques Morelenbaum, Francis Hime, Jaime Além e muitos outros...e a música brasileira é vitoriosa no mundo e sua maior expressão é jobiniana...precisamos revelar isso sempre.
Gostei do visual, teve um tom mágico, gostei dos índios também, somos muito índios basta ver a nossa maravilhosa lutadora do Piauí, linda, somos negros índios e brancos, é bom mostrar isso para o mundo. Gostei da menção construtiva, foi bonito o visual...mas a música...os brits mostraram o que querem com a música, começam sempre pelos Beatles, é claro, assim sobre todas as coisas, e depois descem com tudo, mostram de tudo mesmo. Mas o alicerce é claro. Podemos num rompante de humildade cívica adotar o modelo, afinal parece que dá certo, ou não… Um tiquinho de Villa para limpar a barra com os xiitas e, geléia geral. É outro caminho.
Se de fato Tom e Vinicius, cariocas nativos, fizeram a síntese do Rio que com o baiano João virou síntese nacional e isso se tornou a nossa obra de arte mais importante do século, então temos um alicerce. Isso está constituído. Podemos acrescentar Ari Barroso e Caymmi, o Tropicalismo, e as outras coisas, mas o alicerce lá. Se cultura é confronto, é guerra, então temos que nos armar de nossa potência. É muito sério isso, é nossa primeira Olimpíada num mundo que olha para isso, temos de cuidar do legado, ensiná-lo, sem isso não temos saída, nem avanço. 
Não gostei do Sorriso chapliniano, logo o Rio que é uma sujeira e onde seguranças dão e levam garrafadas, e senti a ausência do clichê das mulheres bonitas e semi nuas. Aqui é assim, com pouca roupa, é quente. 
Hermano Vianna no Globo pensa diferente. Quando Ferreira Gullar fala da necessidade da arte porque a realidade é pouca, Hermano pega isso e invoca Game of Thrones, confunde tudo. Seria como chamar um gibi de ready-made... E fenômeno! Acusa os brasileiros de " inseguros por criar muitas barreiras para nos defender do que vem de fora"... está falando de quem? Dos brasileiros mesmo? Se refere ao Criativo Comum? Afinal, onde estão essas barreiras se só importamos tudo??? Ainda é pouco? 
Mas fala dessas coisas para chegar na cerimônia olímpica preocupado com o "nacionalismo" da festa britânica. Que novidade? Os Brits estão  sempre em festas nacionalistas, o tempo todo, acabaram de celebrar a regata da Rainha na qual se prepararam durante um ano. A seguir as Olimpíadas e semana que vem tem outra...é assim. Cansaço? Decadência? Há quantos séculos? Estamos em plena perplexidade diante do check mate musical: só a música anglo americana domina, circula, produz riquezas. E é tão interessante ouvir falar do fim da indústria da música depois do show dos ingleses na Olimpíada que foi música o tempo todo em todos os lados, mostraram mesmo que a decadência é papo dos “sociólogos”…
O rompante de humildade cívica seguindo o modelo brit de celebração é pra esquecer com nosso Hermano. Ele quer mesmo a geléia geral e já começou a sugeri-la, vide o artigo no Globo. Ele quer "...esquecer o que é realmente brasileiro" ( o Francisco Bosco, outro articulista no mesmo espaço, quer que esqueçamos nossa hegemonia no futebol, inventou outro esporte), Hermano aposta na ... mistura ( será um novíssimo gênero?). Nada de brasileirismos, isso é para Brits e Chinos...ou seja, estamos condenados a comer macarrão com peixe, xis tudo, como se isso não fosse apenas indigência e não um paladar preferido. Hermano quer a festa na rua, nem se liga para a segurança, o trânsito, os turistas, que se danem, somos diferentes e o cheiro de xixi faz parte...ora essa, é insuportável esses populismo avesso de intelectual em apartamento com ar condicionado e varandão se regozijando com o visual da massa, que mijada e fedida usufrui da única organização que lhe é possível, nenhuma, contando apenas com a a sua alegria atávica. Isso é condenação.
Mas eu disse do desgosto em ver o Sorriso na festa olímpica, mesmo gostando tanto dele, porque minha preferência seria mostrar que pobre a gente põe na escola, mais que o orgulho em mostrá-los amenos, boa gente. A vitória do pobre seria sua emancipação, não a cooptação. Projetar uma imagem chapliniana dócil e resignada da sua condição servil, nesse caso, no nosso caso, nesse momento histórico, não me parece mais adequado culturalmente.
O lixeiro e o segurança, não podem ser nossa expressão do urbano nem serve para expressar nossa contemporaneidade. E, francamente, não somos assim, talvez quiséssemos ser algum dia, mas não somos. O lixeiro entre nós o que é? Muito diferente por exemplo dos bombeiros americanos, e o que é a imundice das nossas cidades? Um desastre, uma sujeira impressionante. Então é mentira o lixeiro boa gente. E quanto a nossa capacidade de projetar a alegria na avenida com nossa gente pobre fantasiada, esse traço cultural é mais complexo. Gostei do Freixo diferenciando cultura e turismo, e olhando as Escolas de Samba com outros olhos.
Mas é verdade que o Sorriso é essa capacidade inesperada de produzir arte, mas melhor que não fosse assim e tivéssemos mais escolas e nossos bailarinos se multiplicassem em companhias de balé vitoriosas, o novo mundo produzindo um balé contemporâneo de primeira. Sorriso seria o que?
O futebol nos deu essa explosão de escolinhas de futebol por toda parte, em todo lado tem uma escolinha de futebol e nossa abundância em produzir craques é famosa. Isso é bacana, os meninos jogando bola nas escolinhas, como antes faziam nos terrenos baldios nas cidades. Seria bacana escolinhas Antonio Adolfo por todo Brasil, ou similares, mas como fazemos com a música?
E eu vi Chico Science...mas é tudo isso mesmo? Vamos acreditar então que a nação zumbi é isso tudo? Zumbi é tudo, mas isso é outra coisa.

eu fico então com João, Tom e Vinicius sobretudo.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A intenção frouxa

damien 

Na intenção de justificar a derrota brasileira do futebol nas Olimpíadas o intelectual Francisco Bosco em seu artigo no Globo dispara teses e juízos para nos fazer acreditar que a nossa hegemonia se acabou. Para tanto ele funda um novo futebol onde o talento individual é incapaz de decidir uma partida. Vê-se logo, quem conhece o ambiente das quatro linhas, que nosso sábio não jogou bola. O que o futebol revela é o craque, o futebol existe pra isso e exatamente por isso. Quando Parreira disse a filosófica sentença: “o gol é um detalhe”, errou acertando. O futebol é para o craque. Em campo, todo jogador sabe quem é o craque, que se revela num instante. “Ele”, era como o genial locutor da Tv Excelsior se referia quando a bola estava com Pelé. Hoje quase ouvimos a mesma coisa quando ela está com Messi. Foi assim com Zico, Maradona, Garrincha a alegria do povo, e tantos…o futebol é do craque e sua revelação é o mistério do jogo, e o gol, o detalhe.
Ou seja, Bosco está enganado na partida. É natural que ele demonstre admiração pelo atual técnico da seleção, o Mano. Diz que ele rompe com provincianismo e seus parâmetros avançados passam longe do nosso futebol. Ora, Mano seria um bom analista de TV, comentarista de partidas, tem boa retórica e agrada os ouvidos mais sofisticados no uso do vernáculo. É aí onde moram sua perícia e novidade. Mas o ex-zagueiro Edinho, agora comentarista, descreveu muito bem a diferença no intervalo de uma recente partida difícil para o selecionado brasileiro: “O Mano fala bem dos problemas mas ele se esquece que é o técnico, que ele tem é que mexer no time e não analisar jogos”. Ou seja, Edinho é um craque, percebeu porque sabe da diferença. Não basta a dialética ali no campo, tem uma especificidade que é própria.
O intelectual quer nos ensinar a perder, quer que admitamos uma superioridade no adversário, quer invocar mais uma vez nossas síndromes de inferioridade, quer solapar nossa arrogância, nossa pretensão hegemônica, ali…no campo. Quer que nos habituemos com a possibilidade de…perder. Ou seja, não jogou bola. Nunca disputou um racha numa calçada de rua, nunca arrebentou um dedo nem teve uma bolha no pé, daquelas que tomam quase toda sola. Não sabe o que é isso, não sabe das motivações de uma partida de futebol, do balé e da potência, do drible, da capacidade de enganar o adversário para desconcertá-lo, desequilibrá-lo, ultrapassá-lo enfim. É preciso muita arrogância para partir pra cima com a bola dominada, muita pretensão para finalizar uma jogada com um tiro na meta do adversário, é preciso ter peito e raça para decidir uma jogada. Quem entra admitindo a derrota nunca consegue a vitória, a derrota é uma contingência nunca admitida a priori. Os jogadores choram na derrota. Será que nosso sábio já chorou com a camisa suada, os pés em frangalhos, os músculos moídos e um placar adverso em campo?
E a análise da partida é bisonha, ingênua, trouxa. Relegar o drible ao fundamento tático só na Dinamarca.  Devemos começar por admitir que somos os melhores e que somos obrigados a sê-lo sempre. Justamente o oposto do que sugere nosso intelectual.
Para entrar nos aspectos que agora nem interessam, apenas para não deixar o pitaco sem resposta, o que observamos na terrível partida foi que o meio campo brasileiro não existiu. Sandro, Rômulo e Oscar não empreendiam um jogo que provocasse mais dinamismo no ataque. Mal escalado, Sandro nunca mostrou qualidades para ser selecionado, e com Oscar frágil e sem inspiração, era nítida a exigência da presença de Lucas, mas o que fez o Mano? Entendeu que o ataque não funcionava e colocou Pato, o time ficou definitivamente sem meio campo. Impossível desrespeitar a tradição sem ser penalizado, e quem pagou o pato fomos nós.
A derrota para o México é injustificável e como disse Romário é culpa do Mano. E Romário é que sabe.


Amigos, o mínimo que se pode esperar do subdesenvolvido é o protesto. Ele tem de espernear, tem de subir pelas paredes, tem de se pendurar no lustre. Sua dignidade depende de sua indignação. Ou ele, na sua ira, dá arrancos de cachorro atropelado, ou temos de chorar pela sua alma.
[...] Eu vi que a tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não reconhece o direito de ser vítima.

[...] Oh, meu Deus do céu! Virgem Santíssima! Nós já somos um povo que não faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: – é a cara da derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota cotidiana, a humilhação de cada dia e de cada hora? E é uma ignomínia que venha alguém dizer a esse povo desesperado: – Vá perdendo! Continue perdendo! Aprenda a perder!”.” (Nelson Rodrigues). 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Vamos falar português

relevo Galvão

A língua portuguesa me protege de qualquer sentimento colonizado de inferioridade

GRAÇA MACHEL é viúva de Samora Machel (presidente de Moçambique, falecido num estranho desastre de avião), mãe de Malenga e Josina Machel, meus amigos, e mulher de Nelson Mandela. Graça comanda uma das mais importantes e consequentes fundações do mundo, a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, focada no desenvolvimento da criança e da mulher.
Na condição de presidente da Associação de Empreendedores Amigos da Unesco, fui visitá-la em sua casa em Johanesburgo. Graça gritou em alto e bom português: entrem, entrem. Entramos, Donata Meirel- les, minha mulher, e eu. E eis que, para absoluta surpresa, lá estava ele, Nelson Mandela, tomando sozinho o sol da tarde e lendo o seu jornal de esportes.
Mandela foi submetido a uma lastimável sessão de fotos, mas felizmente Graça Machel chegou para socorrê-lo. Enchendo a sala com sua energia e dizendo com toda a graça que vem com seu nome: vamos falar português.
No meu último artigo para a Folha, dizia que a arquitetura e o design são fundamentais para firmar o Brasil de 2014 e de 2016 como algo além de um mercado emergente, como uma cultura emergente.
Sou do país de Machado de Assis, de Manuel Bandeira, falo a língua de Fernando Pessoa, de José Saramago, de Mia Couto, e ela, a língua portuguesa, me protege de qualquer sentimento colonizado de inferioridade. A poesia brasileira me redimiu de jamais me sentir menor. Durante anos permitimos nos fazerem acreditar que falávamos uma espécie de código secreto, inferior e pobre. Tanto que nossa maneira de desqualificar as pessoas era dizer: ele só fala português.
É verdade que tudo na vida tem seu tempo sob o sol. Durante anos, o Brasil penou com seus números. Mas hoje, que os números da economia são bons, temos tempo, foco e motivação para cuidar das palavras. Agora que o Brasil encontrou seu desenho político, podemos, devemos, precisamos dar atenção ao que não era imediato e hoje ficou premente: nossa cultura, nossa forma de ser, nossa língua.
Como disse Graça Machel: vamos falar português. Temos zilhões de libaneses, de italianos, de japoneses, de coreanos, de alemães e de pessoas de outras nacionalidades que vieram morar no Brasil. Eles foram alunos do português, mas podem agora ser professores. E podem, se devidamente mobilizados, espalhar nossa língua pelo mundo.
Não somos os únicos embaixadores. Emergem como o Brasil as nações portuguesas da África. Angola e Moçambique devem crescer entre 6% e 7% neste ano, como o Brasil. E está provado: a força da língua está ligada à força da economia.
Vale, Petrobras, Embraer, Seara e outras novas e velhas multinacionais brasileiras exibem cada vez mais globalmente nossas marcas e, com elas, nosso design, nosso branding, nossa língua. O português já é, sem nenhum esforço organizado, a nona língua mais falada no mundo.
Imagine o que podemos, de forma articulada, fazer com ele. Os EUA, o principal mercado do mundo, tem uma forte comunidade hispânica. Quem fala espanhol pode facilmente falar português. Os argentinos e outros vizinhos já o fazem, por necessidade. O francês e o italiano são nossos primos. Amore, l'amour, amor são semelhantes. Temos uma plataforma genética e linguística que nos permite sonhar que esse sonho não é um sonho.
Esse sonho não é uma viagem na maionese. É uma ação econômica, industrial, diplomática, política, desportiva, militar. É impossível pensar a Inglaterra sem o inglês e a França sem o francês. Ou a Espanha sem o espanhol.
A verdade é que a única fronteira que sobrou foi a língua. Nós somos brasileiros, não é de nossa natureza colonizar ninguém. Mas, em vez de subjugá-los com nossa língua, podemos iluminá-los. E quem sabe o mundo compreenda o inteiro significado da palavra tolerância, uma palavra tão nossa.
O lindo significado da palavra saudade, palavra que só a língua portuguesa tem. E que me remete a Graça Machel, a Mia Couto, a Jorge Amado, a Caetano Veloso, a Gilberto Gil, a Roberto Carlos. Pessoas que, com talento, graça e absoluta maestria da língua portuguesa, fazem o mundo sentir saudade de nós.

NIZAN GUANAES, publicitário e presidente do Grupo ABC,  Folha de São Paulo 27 de julho de 2010.

sábado, 4 de agosto de 2012

Cícero em transe

pintura Rubens Gerchman

“O REAL NOS ULTRAPASSA, E POR ISSO REAL É. O POETA É AQUELE QUE NÃO SE BANHA DUAS VEZES NAS MESMAS ÁGUAS”

Nas mãos hábeis de Antonio Cícero, a poesia se transforma em uma dança. E o poeta, em uma dança. O próprio Cícero descreve: “Eram palavras aladas/ e faladas não para ficar/ mas, encantadas, voar”. Refere-se aos juramentos de amor, que fazemos entrelaçados na cama, envoltos nos lençóis da língua. Palavras em que a sedução vale mais que a eficácia. “Carícias que por lá/ sopramos: brisas afrodisíacas/ ao pé do ouvido, jamais contratos”. Vivemos no século das transações, dos acordos jurídicos e dos compromissos comerciais. Mundo em que o desejo parece não só imprestável, mas vergonhoso. Pois a poesia, com sua dança, é o terreno do desejo. Enquanto o mundo se verticaliza na ilusão do poder, o poeta se deita para dele duvidar.

Leio os versos de Antonio Cícero em “Porventura”, sua nova e inspiradora coletânea de poemas (Record). Leio e meu coração de leitor também balança. Homens que sabem o que querem não leem versos. “Jamais serei plenamente adulto:/ antes de sê-lo, serei velho”, escreve o poeta, desprezando as certezas que petrificam. A suspeita de que jamais será completamente adulto (pedra) é uma aposta no movimento. O poeta não apenas dança, mas gira, e com seu giro perfura a casca da arrogância. Entra em transe, vive em transe: para o poeta, escrever é uma dança que não se esgota.

Dois mestres surgem em cena, dois poetas, grandes poetas: o anglo-americano W. H. Auden (1907-1979) e o irlandês W. B. Yeats (1865-1939). “Eu exaltaria Auden/ viajante atormentado/ dialético e bizarro”. No mundo da sensatez, das fotocópias autenticadas e da moda, é útil reler Auden que, mesmo educado nos rigores de Oxford, frequentou a esquerda radical e viveu sua homossexualidade abertamente em plenos anos de 1930. “Ou quem sabe, Yeats, numa tarde/ feito essa, tão vadia/ possa a leitura da tua/ poesia, pura Musa,/ inspirar a minha arte/ se eu lhe implorar”. Também Yeats entregou-se ao transe, misturando o hinduísmo, as crenças teosóficas e o ocultismo, e levou a loucura romântica a seu limite. Auden e Yeats, no entanto, se estranhavam. Um via no outro, talvez, o grande rombo que não percebia em si. Indiferente a essas diferenças, Cícero os incorpora. E dança com eles, na grande sala da poesia.

Entrega-se, assim, ao transe das palavras, em que a vida se torna sagrada. Não porque ela repita os textos antigos, ou manifeste a voz de um deus, mas simplesmente porque se reafirma como vida. “Eis o que torna esta vida/ sagrada:/ ela é tudo e o resto, nada”. Lembra-nos o poeta que o único fim (sentido) da vida é a morte, “e não há, depois da morte,/ mais nada”. A constatação, que a alguns deprime, e em outros inocula o cinismo, ao colocar a vida em seu próprio fim, na verdade a engrandece. A vida, essa dança desequilibrada na qual, tontos, mas cheios de calor, resistimos. A vida, à qual a grande poesia — como a de Antonio Cícero — sempre se agarra.

Ao evocar Arquimedes de Siracusa, físico e astrônomo da Grécia Antiga, o poeta recorda as quadraturas, os cálculos de areia, as esferas, cilindros e estrelas, para em seu nome dizer: “nada do que realizei se encontra à altura/ do que há por fazer./ A matemática é longa,/ a vida breve”. Tristes os que acreditam nas sínteses, nos gráficos e nas grandes soluções — enquanto a vida se arrasta como um rio interminável. Tudo o que fazemos, dizemos, escrevemos, é sempre pouco. Muito pouco. O real nos ultrapassa, e por isso real é. O poeta é aquele que não se banha duas vezes nas mesmas águas. Não bloqueia, não detém, não recolhe: entrega-se. Como Arquimedes, um homem cuja ciência, muito mais estreita que o mundo, conservava a consciência do pouco que (apesar de tudo) tinha a dizer.

A vida é desejo e, por isso, nunca chega a si, sempre está aquém de si. No livro de Antonio Cícero, um pequeno poema, “Desejo”, diz tudo: “Só o desejo não passa/ e só deseja o que passa/ e passo meu tempo inteiro/ enfrentando um só problema:/ ao menos no meu poema/ agarrar o passageiro”. Na vida contemporânea, nos habituamos às escadas rolantes que levam sempre às mesmas vitrines. Às religiões ortodoxas, que repetem sempre as mesmas verdades. Ao pragmatismo, que conduz sempre ao mesmo cinismo. Quase não há mais vida (movimento e passagem) na vida contemporânea. Uns poucos — os poetas — insistem em agarrá-la. Insistem em se fixar no instante que, mal é, já não é mais. Só os poetas suportam a fluidez na qual, apesar de nossa indiferença, estamos mergulhados.

“Que não se engane ninguém:/ ser um poeta é uma África”, escreve Cícero. Em um mundo que se entrelaça em uma grande rede, na qual tudo se vende e tudo se expõe, o poeta aponta a inutilidade de seu gesto. “Exporei tudo na rede/ sem ganhar nem um vintém”. O poeta sabe que trabalha nas bordas, ali onde as verdades escorrem, e que trabalha com as sobras, ali onde ninguém mais deseja. “Eis o que consegui:/ tudo estava partido e então/ juntei tudo em ti”. Partes que não se encaixam, palavras que não se completam, certezas que se esfarelam: “eu quis correr esse risco antes de virar/ pó”. O risco do poeta é o risco de existir. Pode haver aposta mais bela?

No mundo do tempo real, nos asfixiamos em notícias e fatos que, muito raramente, tocam o real. Nesse universo hiperiluminado, de imagens feéricas e figuras chapadas, desprezamos as entrelinhas. Contudo, é nelas que a vida não só se costura, mas respira. O poeta coloca-se em outro lugar, que Cícero descreve assim: “É aqui, mais real que as notícias, na própria/ matéria, na dobradura de uma folha”. Ali permanece, espremido em um vão, entre “linhas e planos apenas esboçados”. Quem aguenta, hoje, a imprecisão de um esboço? Quem suporta o meio do caminho, onde nada se afirma e nada se completa? Pergunta o poeta: “Não será a saída um desvio/ e o caminho o único fim?” Questão incômoda, que arruína nosso mundo de balancetes e de planilhas, enquanto o poeta, resignado a ser, limita-se a respirar. Respira o grande rio que o arrasta. Respira as coisas do mundo e, sempre suspeitando de si, se pergunta: “dar a mim mesmo este presente?”

josé castello
O GLOBO
04/08/2012 

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Guardar

foto GL

 Antonio Cicero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.