sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Uma vida humana

pintura Damien Hirsch / foto GL
Roberto Mangabeira Unger

Cada um de nós nasce enquadrado. Acordamos do nada e nos encontramos jogados dentro de uma classe, de uma raça, de uma naçäo, de uma cultura, de uma época. Nunca mais conseguimos nos desvincilhar completamente desse enquadramento. Ele nos faz o que somos.

Mas não tudo o que somos. O indivíduo sente e sabe, também, ser mais do que essa situaçäo ao mesmo tempo definidora e acidental. Ela nos quer aprisionar num destino específico. Contra este, rebela-se, em cada pessoa, o espírito, que se reconhece como infinito acorrentado pelo finito. E tudo o que quer o espírito é encontrar uma moradia no mundo que lhe faça justiça, respeitando-lhe a vocaçäo para transgredir e transcender. Por isso, as raízes de um ser humano deitam mais no futuro do que no passado.

Entretanto, o indivíduo cedo precisa abandonar a idéia de ser tudo para que possa ser alguém. Escolhendo e abrindo um caminho, ou aceitando o caminho que lhe é imposto, ele se mutila. Suprime muitas vidas possíveis para construir uma vida real. Essa mutilaçäo é o preço de qualquer engajamento fecundo. Para que ela näo nos desumanize temos de continuar a senti-la: a dor no ponto da amputaçäo e os movimentos fantasmas dos membros que cortamos fora. Precisamos imaginar a experiência das pessoas que poderíamos ter sido.

Depois, já mutilados e lutando, vemo-nos novamente presos dentro de uma posiçäo que, por melhor que seja, ainda näo faz jus àquele espírito dentro de cada pessoa que é o infinito preso no finito. Rendendo-nos, por descrença e desesperança, a essa circunstância, começamos a morrer. Uma múmia se vai formando em volta de cada de nós. Para continuar a viver até morrer de uma só vez, em vez de morrer muitas vezes e aos poucos, temos de romper a múmia de dentro para fora. A única maneira de fazê-lo é nos desproteger, provocando embates que nos devolvam à condiçäo de incerteza e abertura que abandonamos quando aceitamos nos mutilar.

É do hábito de imaginar como outros sofrem a mesma trajetória que surge a compaixäo. Aliada ao interesse prático, ela nos permite cooperar no enfrentamento das condiçöes que tornam o mundo inóspito ao espírito. E é para torná-lo mais hospitaleiro ao espírito que precisamos democratizar sociedades e reinventar instituiçöes. Temos de desrespeitar e reconstruir as estruturas para poder respeitar e divinizar as pessoas.

Vivemos, porém, em tempo biográfico, näo em tempo histórico. Precisamos de soluçöes que nos atendam no espaço das vidas que temos para viver. Qualquer construçäo institucional precisa, para avançar, beber na seiva de frustraçöes e aspiraçöes pessoais.
Uma doçura gratúita, calor misterioso, já une o Brasil. Será que nasce da sabedoria a respeito das coisas mais importantes? A maioria dos brasileiros parece saber, instintivamente, a verdade sobre o drama do espírito -- tudo que eu trabalhei täo penosa e tardiamente para descobrir. Näo conseguimos, porém, passar da intuiçäo da realidade existencial à imaginaçäo das possibilidades coletivas. Ainda nos faltam clareza sobre um rumo para o país e confiança em nossa capacidade para desbravá-lo. Desiludidos da vida pública, temos de passar pela desilusäo da desilusäo e nos fazer profetas de nossa própria grandeza.  ( setembro 2001-Folha de SP)

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