sexta-feira, 16 de março de 2012

Ao Pé da Letra

pintura Zé Maria Rebelo
A intervenção mais inteligente e intempestiva vinda da área cultural nos últimos tempos foi a de Hélia Correia no programa "Câmara Clara”, ao responder assim a quem lhe perguntou que medidas deviam ser tomadas para tornar mais conhecida a obra de Maria Gabriela Llansol: “Nenhumas. Quem sentir falta que leia". Interromper o proselitismo e o nauseabundo ambiente de campanha instalados desde há muito em várias áreas culturais, nomeadamente nos livros, é uma tarefa urgente, se queremos sobreviver a estas formas de condicionamento dos espíritos - suprema manifestação do niilismo contemporâneo. É preciso destituir esta “fala” sobre os livros endereçada a quem presumidamente pouco ou nada sabe, porque o contrário é que é necessário supor: que todo o discurso tem como interlocutor alguém que sabe muito mais. E isto tanto vale para as manifestações onde se difundem títulos de livros e nomes de autores, como para a crítica, cujas regras, protocolos e modos discursivos foram completamente subvertidos e adulterados pelo estúpido imperativo de aconselhar, de dizer implícita ou explicitamente que é "obrigatório", de presumir a incapacidade e a falta de saber de quem está do outro lado. A crítica de um livro que não suponha a inteligência e a soberania intelectual do leitor entra imediatamente numa outra categoria: a do marketing, a da difusão, a da propaganda. Não há nada a difundir, nada a aconselhar, nada que seja obrigatório. Presumir o contrário é entrar fatalmente no discurso da estupidez que se manifesta em injunções deste tipo: -Este livro faz·lhe falta, aceite o meu conselho.- Conseguir, no entanto que alguém sinta por si, em total soberania, uma falta que não sentira antes, isso sim , é a única tarefa capaz de nos salvar da horda triunfante de defensores dos livros e da literature, dos quais, todavia ela precisa de ser salva.
publicado no Jornal Expresso por Antônio Guerreiro em 10 de março de 2012. 

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