segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

ídolo Total - Caetano Veloso

foto Teresa Eugênia

Nenhum outro artista brasileiro foi mais decisivo para a minha formação pessoal. Nenhum dos que também o foram resistiu mais ao crivo crítico da minha mente amadurecendo através dos anos. João Gilberto lançou uma luz angelicalmente suave e diabolicamente penetrante sobre o passado e o futuro da música chamada popular brasileira e nada pode ser visto aí com propriedade se não se leva em consideração essa luz. Toda a cultura e mesmo toda a vida dos brasileiros foi atingida por ela e por ela alquimicamente transformada. O tropicalismo foi um movimento romântico-destrutivo, mas a bossa nova foi um movimento clássico construtivo. Se Antonio Carlos Jobim é o mais exuberante e genial compositor-músico surgido da bossa-nova, João Gilberto é o mago que parece ter criado a possibilidade de tudo isso acontecer. Com o seu simples modo de tratar a palavra cantada, ele faz tanto pela língua portuguesa quanto os seus maiores poetas. Compreendendo e sentindo como ninguém a plasticidade do português falado no Brasil, ele age a um tempo desbravadora e normativamente sobre a sua história.  Fazendo sempre a mesma coisa que nunca é a mesma. João não pára de nos deleitar e surpreender, acalmar e intrigar. A escolha do repertório, o gosto das cadências harmônicas, a duração das notas da melodia dentro do tempo, o senso do silêncio, o jeito único de fazer soar o violão, tudo faz com que seu canto e seu toque sejam sempre uma lição e uma oração.  Uma nova lição e uma eterna oração.  Fico emocionado só de saber que João Gilberto vai cantar em Portugal. Nesse momento da conversa luso-brasileira, o diálogo deverá atingir a sua maior profundidade.
texto de Caetano Veloso em junho de 1984 para os 25 anos de carreira de João Gilberto, produzido pela ShowBras e celebrado em Lisboa 

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