sábado, 28 de janeiro de 2012

Filme brasileiro

ilustração Trimano
No auge da juventude de minha geração, quando estávamos convencidos de que íamos mudar o mundo com nossos filmes, costumávamos andar sempre em bando, como acontece quando compartilhamos utopias. Àquela altura, o Laboratório Líder era uma espécie de sede social do Cinema Novo em formação, de nossos encontros e reuniões realizados entre o casarão da Rua Álvaro Ramos e, na calçada oposta, um botequim modesto do qual nunca se soube o nome, pois só o chamávamos de Bar da Líder.

No simpático pé-sujo se faziam negócios e se trocavam informações, se discutia o futebol e se desenvolviam teorias sofisticadíssimas sobre o cinema em geral e o brasileiro em particular, tomando chope gelado e café requentado, comendo ovo cozido pintado de várias cores (a maior parte das vezes, cor-derosa), servido por Raimundo, garçom nordestino de bigodes fartos e temível corpanzil, que não respeitava ninguém. Por ali, reinava soberano sobre todas as tribos Nelson Pereira dos Santos, que tinha terminado “Mandacaru vermelho”, interpretado por ele próprio e Miguel Torres, ator que teria sido Fabiano em “Vidas secas”, não tivesse morrido tão cedo.

Nelson tinha ido para a Bahia filmar o romance de Graciliano Ramos, seu velho sonho, mas uma chuva inesperada tornou a caatinga verdejante durante meses. Para não perder a viagem e os recursos levantados, improvisou outro filme, um roteiro escrito em parceria com Miguel à medida que as filmagens avançavam, uma rapsódia romântica passada num Nordeste cuja secura não estava na geografia, mas na alma de seus personagens.

Era pelos cantos do Bar da Líder que trocávamos confidências sobre namoradas, família e outras amarguras. Era naquelas mesas bambas que contávamos uns aos outros os filmes que queríamos fazer. Foi ali que ouvi de Glauber Rocha, pela primeira vez, sua profecia recorrente e não realizada de que morreria aos 24 anos, como Castro Alves, o poeta baiano que nascera no mesmo dia que ele, 14 de março. Foi ali que Paulo César Saraceni decretou que o Cinema Novo não tinha nada a ver com idade, o Cinema Novo era uma questão de verdade e amizade. O que tinha tudo a ver com o Bar da Líder.

Uma noite, alertados por Paulo César, corremos atrás de Glauber que, numa crise de angústia e pessimismo, jogava os copiões de “Barravento” no lixo da Líder. Nelson ajudou a recolher os copiões do lixo e terminou montando “Barravento”, como faria depois com o episódio de Leon Hirszman em “Cinco vezes favela”. Passamos a invadir em bando a sala de montagem dos dois filmes, para não perdermos essas aulas magnas de cinema.

Dentro ou fora do Bar da Líder, Nelson era o grande mestre celebrado e respeitado por todos, não se fazia nada de importante sem que fosse consultado.

A diferença de idade entre ele e nós, que hoje não significa nada, era às vezes incômoda. Ela criava uma relação de certa cerimônia, para a qual contribuía sua ironia suave mas perfunctória, uma doçura que às vezes se transformava de repente em discurso agressivamente crítico. Certa vez, numa mesa do botequim, cercado de colegas, levei um desses seus esporros monumentais porque falei mal de um filme brasileiro recémlançado, realizado por um cineasta que não era muito admirado por nossa turma. Embora ferido, não tive coragem de responder-lhe. Mas também nunca mais esqueci seus argumentos em torno da responsabilidade que temos sobre todo e qualquer filme brasileiro, a necessidade de vê-los com um olhar responsável.

O que dissermos sobre um filme de Scorsese ou Spielberg não fará a menor diferença para a vida de seus realizadores. Mas a existência de um filme brasileiro depende de nós e de nossa disposição diante dele. É preciso ao menos um pouco mais de cuidado ao reagirmos ao filme, porque não se trata de perguntar se é possível fazer cinema no Brasil, e sim se isso é desejável. Se queremos mesmo que exista um cinema brasileiro.
Agora Nelson nos dá um presente surpreendente, uma afirmação positiva dessa ideia, com seu documentário (?), em parceria com Dora Jobim, “A música segundo Antonio Carlos Jobim”, em cartaz em todo o Brasil.

Nem reparei que era um documentário, que não havia tramas, personagens ou diálogos nesse filme, para mim estava sendo contada a história de um dos gênios brasileiros do século 20, através de sua produção artística. E, com essa história, registrava-se na tela uma cronologia do que este país já teve de melhor, como exemplo do que poderemos sempre ser.

Todos os momentos de “A música segundo Antonio Carlos Jobim” são imprescindíveis e inesquecíveis, do jeito que estão lá. Da voz inteligente e doce da bossa nova de Nara Leão à energia espetacular e dramática de Elis Regina, da consagração ao lado de Frank Sinatra à cantora alemã sem balanço a cantar “Garota de Ipanema”, é como se todos nós tivéssemos feito esse filme. Só um grande mestre do cinema é capaz de realizar um sonho desses.

CACÁ DIEGUES ( publicado no Globo 28/jan/2012)

2 comentários:

  1. É imprescindível que o Cacá explique o que vem a ser este "falar do cinema brasileiro com responsabilidade" Não pode ser visto como irresponsabilidade criticá-lo.O que se pretende, um pacto? Um fechar de olhos coletivos só para que tenhamos um cinema? Uma forma disfarçada de protecionismo? Acho muito esquisito este discurso protegido por romantismo, sentimentalismo e nostalgia. Não assisti ainda, mas o que é grande no último Nelson Pereira dos Santos, o filme ou o Tom?

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    1. Vc tem razão, creio que o Cacá nos diz que a crítica deve ser responsável também, comprometida. Não se trata de negar a função da crítica, ao contrário, comprometê-la. O cenário cultural global se apresenta com hegemonias, lideranças, concentração de poder, para participar desse ambiente é preciso muita afirmação, para superar a livre competição é preciso muita competência, muita crítica, muito senso crítico e maturidade, de produção e criação. Olhos bem abertos. Temos que compreender a circunstância, o contexto onde se apresenta a obra. Como ele disse, o produto estrangeiro nos chega já definido, realizado, vem pra cá no seu movimento de reprodução, mas já realizado. Nossa obra não, ela nos chega para se afirmar, é completamente diferente. E ela nos fala de nós, nossa arte nos traduz, temos que nos olhar de frente. Temos de ser criticamente protecionistas, é inevitável, estamos falando de nós mesmos. Vá e assita o filme...

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